terça-feira, 23 de novembro de 2010

Porcelana - primeira parte

Quando se apaixonou pelo bonequinho de madeira que estava na mesma prateleira que a sua, ela acreditava ser feita de porcelana. Ao seu redor, não havia reflexos que pudessem lhe mostrar verdades ocultas; essas, portanto, ela contentava-se em deduzir pelas próprias expectativas e pelos desejos mais íntimos de seu coração. Porque, naturalmente, ela também acreditava que bonecas de porcelana possuíam corações - desses desesperados, inquietos, vibrantes e sinceros corações que pulsam pelo mundo afora. E o seu, lhe aquecia as esperanças de que o bonequinho de madeira um dia percebesse que o destino os empurrava cada vez mais fortemente, para que esbarrassem um no outro e percebessem: estava aqui o tempo todo, e somente eu não vi.

Então mesmo que ela já houvesse visto - e ele a seu modo também - foi necessário que o destino e a sorte dessem as mãos, para tornar os empurrões mais fortes, mais avassaladores, mais inevitáveis. Até que, finalmente, aconteceu. O bonequinho de madeira alcançou o ponto exato da prateleira onde ela o esperava. E aqui, lhes conto um segredo que quase ninguém nos conta: facilmente, eles se apaixonaram. Porque apaixonar-se não é, nem nunca será, mais trabalhoso do que manter os sentimentos sob os golpes que o tempo nos traz em seguida. Apaixonar-se é fácil, é doce e leve. Apaixonar-se eleva a alma. E, apaixonados, eles se elevaram.

Até que o tempo (inevitavelmente) começou a passar... a prateleira tornava-se empoeirada e dias depois era limpa, mas sempre restava algum pó. É assim, não é? Sempre resta. E de modo triste, a bonequinha foi percebendo, aos poucos, que não era quem imaginava ser. Enquanto sua felicidade crescia ao lado do bonequinho de madeira, surgiram os primeiros impasses, os primeiros desentendimentos, as primeiras decepções. E decepcioná-lo era semelhante a morrer um pouco. Mas por que acontecia, se ela o esperara tanto? E aqui, lhes conto um segundo segredo: a bonequinha, que durante todo o tempo imaginara ser feita de porcelana, era na verdade uma costura de retalhos velhos e emendados. A bonequinha era feita de pano.

Enquanto ele, de madeira, lhe parecia tão forte, tão inabalável, tão seguro e tão correto, ela descobriu que não possuía a fragilidade tão linda da porcelana... se despencasse da prateleira ao chão, não seria preciso que ele a salvasse. Ela não se desfaria em centenas de caquinhos. Continuaria inteira, mesmo que sentisse machucar-se. E como era triste não precisar ser salva, quando intimamente isso era tudo de que ela mais necessitava.

Perceber-se de pano retalhou aos poucos sua certeza de que era perfeita para ele. Agora, era mais sensata a possibilidade de existir uma outra bonequinha mais firme - de madeira também, da mesma que a dele, talvez - para torná-lo feliz sem os impasses, sem os desentendimentos, sem as decepções. Uma bonequinha de madeira, para fazer com que ele se jogasse em sua salvação, ao despencar do alto da prateleira. Uma bonequinha de madeira que não acumulasse a poeira dentro de si, mas apenas em seu exterior.

[...]

2 comentários:

  1. As vezes a gente faz tão pouco de nós mesmos... e na maioria delas somos bem mais do que imaginamos.

    Adorei o post :) vontade de ler a continuação agora! haha

    beeeijo!

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  2. Seria uma verdadeira provação abrir mão do bonequinho de madeira, mas me parece mais um ato de medo. Afinal, bonequinhas de pano também precisam ser salvas, da água, por exemplo. Não é fácil manter-se apaixonado quando os impasses surgem, espera-se sempre que precisamos ser salvos pelo outro ou que o outro se deixe ser salvo, quem sabe?

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